domingo, 7 de agosto de 2011

Re-consagração de Malunguinho - Uma transmissão familiar de ancestralidade e ciência na Jurema

Malunguinho. Festa da Lavadeira 2011. Foto de Thiago Angelin Bianchetti.

Re-consagração de Malunguinho
Uma transmissão familiar de ancestralidade e ciência na Jurema

*Alexandre L’Omi L’Odò

Cheguei à minha casa pensando em registrar em texto a vivência que tive com a Jurema. Vi coisas bonitas e senti coisas importantes... Este é um texto de registro histórico.

Hoje, dia 06 de agosto de 2011, foi a data da re-consagração de Malunguinho, um fato histórico de sucessão hierárquica na Jurema. Todo acontecido religioso foi possível por causa do juremeiro João Folha, já renascido para a espiritualidade. Um dos mais tradicionais e antigos juremeiros da região do Jordão Baixo no Recife/PE, falecido no dia 15 de maio 2011 de complicações cardíacas, deixando o terreiro “Mensageiros da Fé”, casa regida pela cabocla Iracema, com mais de 43 anos de funcionamento, sendo o mais antigo terreiro de Jurema e culto nagô deste bairro. O terreiro também é regido pela divindade Malunguinho, que tem um espaço especial no terreno, sendo o único que “mora só”, com culto próprio e específico. Malunguinho foi o regente de Seu João Folha, que era filho de Xangô com Oxum, mas tinha no culto da Jurema sua maior sustentação e fé.

O templo se estabeleceu na localidade que há 70 anos era conhecida como Sítio das Cacimbas e, depois se tornou popular com o nome de “Bica de Seu João Folha”, terras da família de Dona Dora, que há quatro gerações se mantém residindo.

Dona Dora. Mestra Juremeira e Iyalorixá. Foto Diego Nigro.

O terreiro foi fundado por Dona Dora, “filha de santo” do falecido Genival Francisco de Araújo, da Rua Orubatanga, no Córrego da Gameleira/Recife, e depois de Seu Luiz da Guia (Luiz José de Santana), que hoje se encontra com 98 anos de idade. E Seu João Folha, em 17 de abril de 1968 no mesmo local onde hoje está estabelecido. Mas, Dona Dora já tinha culto pelo menos há cinco anos antes em um local no mesmo Sítio de sua família, próximo a atual localidade.

Os motivos da abertura da casa foram os problemas de saúde que abateram a sacerdotisa, a pressionando a fundar o local onde suas divindades e entidades iriam ter morada definitiva. Oyá Egunitá, seu “Orixá de cabeça”, o Mestre Zé Malandro, Galo Preto, Mestra Georgina, Seu Tranca Rua das Almas entre outras e outros, fizeram da Rua Fernandes Belo, n° 611, o caminho para ajudar os necessitados, trazendo a cura e a iniciação, dando caminho e orientação, ajudando a preservar a memória dos índios e negros que deixaram essa missão para ela e tantos outros.

Foram 55 anos de casados. Tiveram 9 filhos, mais de 16 netos e 7 bisnetos. Dentre estes e estas está Rosemary de Fátima, conhecida como Mary, filha de Oxum e herdeira do axé de Malunguinho. Casada com filhos, ela foi a escolhida pela Jurema para perpetuar a ciência de seu pai, que tinha em Malunguinho uma fé incondicional, mesmo não o recebendo em seu corpo com manifestações espirituais, ele cultuava Malunguinho com tanto afinco e adoração que as pessoas até o questionavam brincando: “o senhor fala mais em Malunguinho que em Deus”... Dona Dora ainda diz: “o Deus dele era Malunguinho, pois ele tinha tanto amor por ele que tenho certeza que ele está feliz com sua filha o ter herdado, inclusive manifestando-se, trazendo sua ciência para todos verem”.

O fato da transmissão familiar da ciência é uma circunstância não muito comum dentro dos terreiros de Jurema. O que assistimos frequentemente é quando um juremeiro ou juremeira antigo ou antiga morre, seus objetos rituais e sua história são jogados fora pelos seus filhos e netos e sacerdotes responsáveis. Os motivos desta atrocidade cultural são os mais diversos como a responsabilidade em ficar cultuando algo que não é seu, não ter ninguém da família pertencente a religião, até mesmo o desrespeito completo com a ancestralidade e a falta de conhecimento sobre os procedimentos corretos dos rituais. Isso vem fazendo grande parte da história da Jurema se apagar e cair no completo ostracismo. Mas com o caso de Seu João Folha foi diferente, sua história se manteve viva na família com toda legitimidade e consciência.

Mary. Filha carnal de Dona Dora e herdeira da ciência de Seu João Folha. Foto Alexandre L'Omi L'Odò.

Desde pequena Mary vinha se “manifestando” com Malunguinho, e Dona Dora já pressentia que este iria ficar na casa, para segurar o axé do terreiro, através de sua filha que iria ficar responsável pelos assentamentos de seu pai. Fato este que, todos os filhos e filhas e freqüentadores do terreiro celebraram com muita alegria, pois Malunguinho se confirmou e pronunciou publicamente dirigindo-se ao sacerdote Sandro de Jucá, responsável pelas suas cerimônias e culto e a Dona Dora, estar “muito satisfeito com as oferendas ofertadas a ele”. Ele dançou, brincou, celebrou, cantou, comeu, bebeu e fumou, saudou seus protegidos e agradeceu. E de fato, a força de Malunguinho se fez presente no barracão. Todos sentiram a forte energia que emanou de dentro da casa onde ele mora. Frutas, bebidas, fumos, velas e animais compuseram suas oferendas. Assim se fez parte da re-consagração de Malunguinho, que agora passa a ser zelado por Mary. As armas e símbolos da divindade (preaca, estrela de seis pontas, volta de ave-maria, cipó de japecanga, cachimbo e sementes) foram repassadas pela antiga Juremeira Dona Rita de Malunguinho, que tem 74 anos de iniciada no culto à Jurema e 89 anos de idade. Ela, que é irmã de Jurema e de axé de Sandro de Jucá, também de Seu João Folha, sendo eles iniciados pelo falecido Grivaldo de Xangô, conhecido como Pai Brivaldo de Xangô, discípulo do Mestre Zé da Pinga, formalizaram um ato familiar do mesmo axé e ciência, firmando laços de consideração religiosa pelos irmãos mais velhos que tem o direito de repassar objetos sagrados aos mais novos.

Malunguinho "manifestado" em Mary. Foto de Alexandre L'Omi L'Odò.

Mary, recebendo as armas de Malunguinho pela juremeira Dona Rita de Malunuginho. Foto de Alexandre L'Omi L'Odò.

Confraternização. Mary e Dona Rita de Malunguinho. Foto de Alexandre L'Omi L'Odò.

Mary firmando na Cidade de Malunguinho. Foto Alexandre L'Omi L'Odò.

Como é de tradição das casas mais antigas de Jurema e Candomblé (Xangô) de Pernambuco cultuar Exú no mês de agosto, a Casa de Dona Dora não poderia deixar de realizar os rituais e liturgias de sempre, pois mesmo a Casa estando de luto pelo falecimento de Seu João, Malunguinho solicitou suas “abrigações” e permitiu que os rituais dos Trunqueiros/Exús fossem todos realizados, mesmo que sob a regra do silêncio dos Ilús (instrumentos sagrados de percussão), sendo permitido apenas o uso das macas e palmas de mão para dar o ritmo aos cânticos rituais.

Todo ritual foi regido pelo juremeiro e babalorixá Sandro de Jucá e pela iyalorixá e Mestra juremeira Dona Dora, que como sempre, deram o tom adequado aos ritos, trazendo informações/elucidações e boa energia. Foi feita a limpeza de agosto tradicional com as aves e velas e todos cantaram toadas de limpeza:

“É na Jurema, é na Jurema, to me limpando é na Jurema”...

Os cachimbos acesos, fumaçando os desejos, levando à Jurema os pensamentos, estiveram presentes todo o tempo nos rituais, com a variação do uso do fumo preto e do fumo mais suave.

Juremeiro Sandro de Jucá, abrindo os cânticos no quarto de Malunguinho. Foto Alexandre L'Omi L'Odò.

A fala de Sandro sobre a família de Dona Dora e as responsabilidades no terreiro com a continuidade das práticas após o falecimento de seu fundador, reuniu antes de iniciar as imolações todos dentro do salão da Jurema. A fala foi de fundamental importância para informar aos presentes e aos filhos Ricardo Gonçalves e Luiz Gonçalves e ao neto Luiz Carlos Jr. Que com a “ausência” de Seu João, as práticas tradicionais da casa não mudariam em nada. Todas as normas estruturadas por Seu João durante sua gestão no terreiro se manterão completamente, sendo sempre relembradas por Sandro e Dona Dora. Agora Seu João é um Esá (ancestral ilustre) no Balé - Ilé Ibó Akú (casa de adoração aos mortos) do terreiro, e de lá vigiará as atividades dentro da casa. Sandro ainda colocou que “a casa não é dele”, e que ele está ali apenas para dirigir os rituais e organizar as funções referentes a um babalorixá e juremeiro. Sandro, pediu para que os filhos carnais de Dora estivessem sempre presentes na casa para observar de perto o que acontecia e que eles dêem força a sua mãe, pois ela está sofrendo opressão de uma de suas filhas que é evangélica neopentecostal, que está tentando convertê-la para que ela feche o terreiro e venda o terreno para dividir o dinheiro entre os herdeiros. As investidas dessa filha têm perturbado Dona Dora demais. E isso compromete as praticas dela, pois dentro de sua própria casa ela esta sofrendo a intolerância religiosa e o preconceito. Os filhos se comprometeram em ajudar e concordaram com a conversa toda. Depois dessa reunião, os trabalhos começaram com muita animação, invocando os Trunqueiros, como Seu Tranca Rua, que foi o primeiro a receber as homenagens em seu mês.

Sandro de Jucá (ao centro de vermelho) discursando ao terreiro. Sentada Dona Dora, em pé seus dois filhos. Foto Alexandre L'Omi L'Odò.

Neto Luiz Carlos Jr e filhos Ricardo Gonçalves e Luiz Gonçalves. Foto Alexandre L'Omi L'Odò.

Os rituais seguiram tranquilamente, com muita participação dos presentes. Depois dos Trunqueiros, os rituais foram dedicados à Malunguinho, com a re-consagração de Mary e depois veio a vez das pombojiras, que animaram o salão com suas características sedutoras e dinâmicas. Contudo, a festa foi bonita de observar, mas faltava um dos responsáveis - o Seu Vira Mundo, também conhecido como Bate Porteira. Ele “desceu” em Sandro de Jucá próximo a meia noite e ai a festa foi completa... O coco tomou conta do salão, puxado pelo Seu Vira. Eu cantei, Seu Vira cantou, depois chegou o Seu Zé Malandro, Mestre da sacerdotisa, que também entoou cocos conhecidos. Seu Vira Mundo entoou um coco característico da espiritualidade de um trunqueiro de Jurema e deixou o salão a prestar atenção:

“Na minha Cidade existe três reinados encantados, um é feio, outro é bonito e o outro é mal-assombrado”...

Pai Lula de Ogodô, babalorixá responsável pelo axexê de seu João Folha também cantou e relembrou os antigos cocos cantados por seu pai carnal, nos tempos que o levava para “os cocos” de Recife adentro... O terreiro todo celebrou a vida junto aos mestres e pombojiras que estavam presentes no salão. A cena em si foi muito bonita, pois nela tinha uma harmonia e uma consciência muito clara de que o povo de terreiro encara a vida assim como encara a morte, e esta visão filosófica se traduziu com a pisada forte do coco, ritmo, cântico e dança do nordeste brasileiro e as palmas de mão com as respostas. Uma banda musical de maracás, abês, e um balde se fez no momento e pessoas que em sua vida cotidiana, como médicos, professores entre outros, não se relacionam com a liberação do corpo e da alegria interna de existir, se revelaram tocadores e dançarinos alegres, soltos e vibrando na energia da Jurema. Entidades e pessoas vivas, celebrando juntos à vida, em uma demonstração perfeita, contida de toda teoria antropológica da observação, fenomenologia, semiótica etc... Traduzida em uma frase: “A Jurema abala, e seus discípulos não tombam”.

Acordei no terreiro. Dormi no salão dos Orixás, local separado do salão da Jurema. Dona Dora não me deixou ir embora às 1h30min da manhã, forrando pra mim um colchão no chão com o Alá de Oyá, pano que cobre o Orixá em suas saídas de quarto no culto nagô em PE. Foi uma enorme satisfação, poder contar com o respeito, cuidado e confiança de uma sacerdotisa tão antiga como ela. Acordei às 7h, ao som de uma chata música evangélica, que saia do celular de Beto de Iyemojá, que só dorme escutando este tipo de música, pois diz que lhe dá sono e relaxa. Pode isso? Rsrs.

Tomei um cafezinho esperto feito no fogão à lenha com um pãozinho e queijo preparados pelas iyabás da casa e logo fui embora, pensando em escrever este texto, para registrar minha alegria em poder viver junto a pessoas tão especiais e religiosas como as que pude estar. Este foi o melhor presente antecipado de aniversário que pude me dar.

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*Alexandre L’Omi L’Odò - Graduando em História pela UNICAP, Egbomi de Oxun, Juremeiro e coordenador do Quilombo Cultural Malunguinho.

Este texto foi construído com entrevistas consedidas por Dona Dora e Sandro de Jucá.

Dedico este texto à Seu João Folha e a Malunguinho, pelo axé que me banharam.


Alexandre L'Omi L'Odò
alexandrelomilodo@gmail.com

2 comentários:

david disse...

Aproveitando esse momento para parabenizar você Alexandre por seu aniversário agradecemos muito sua participação no terreiro de minha avó e nós estamos muitos felizes Obrigado a você á Sandro de jucá á Jião monteiro por essa dedicação e respeito a nossa familia Parabêns a tosos e a ao Rei Malunguinho !David Evertom

Sandro de Jucá - Sacerdote Bàbálòórìsá e Juremeiro disse...

Se faz necessário tambêm destacar a figura de dona Edithi Santana (im memoria) esposa de seu Luiz da Guia que era madrinha de dona Dora e dona Francelina maria da Silva dona França yálorixá de dona Dora que tinha seu terreiro na mesma rua e em conjunto com dona Edithi é um esá que é referênciada dentro do igbalé da casa,Existem outros que fizeram parte deste terreiro,Angelina de yêmonjá tolofim,Manoel de Xangô que faleceu com mais de 80 anos ele era responsavél pelo irokô da casa, Amara de Iansâ yabá,Carlinho (zigue-zigue) de Xangô Pegigan da casa,Dentre outros e outras que ajudaram e ajudam a construir essa história,Dona Marta (matilde) de yêmonjá assabá oluaxé,yákekerê,Cremilda de xangô obálujá,dona Maria de Nânâ ekedy,Nena de yêmonjá Ataramangbá ekedy,Valter de ogum apáerin axóogum,Nalva de oyá bómim ekedy,Ceça de oyáonira,Cicero de Xangô taidê cargo ainda não definido pelos orixás, junto com Greysom de yêmonjá,dentre outros vamos continuar essa missão de amoe e fé até o dia que olodumarê quizer, É PAU GUINÉ !